Eu estava dormindo e eu sabia disso, mas aquele pesadelo parecia tão real que era como se eu estivesse passando por toda aquela angústia de novo. As mãos do Arthur passeando e apertando o meu corpo, sua boca pressionada no meu pescoço, eu conseguia até sentir a dor forte em minha cabeça. Acordei arfando, no susto e com o coração acelerado. Eu ainda estava do mesmo jeito de antes, com as roupas rasgadas, o gosto de sangue em minha boca, meus pulsos roxos e os cabelos emaranhados. O relógio da cômoda marcava três e quarenta e oito da manhã, quando a porta foi aberta. Eu estava pronta para gritar, correr e minha mente pensava que era outra pessoa, quando eu finalmente encontrei aqueles olhos. Vermelhos, preocupados, tristes.
- Volta a dormir, pequena.
- Eu... Eu vou tomar um banho primeiro. Olha o meu estado. - murmurei.
Kurt apenas maneou a cabeça e me deu um beijo na testa, enquanto eu ia em direção ao banheiro do meu quarto. Não queria me olhar no espelho, eu fazia certa ideia do meu estado e não precisaria de uma confirmação para me deixar pior do que já estava. Tirei minha roupa o mais rápido que pude e fui para debaixo da água fria.
Quando eu fechava os olhos, as imagens da sauna vinham em minha cabeça e eu não conseguia fazer isso parar. Eu estava com nojo de mim mesma, nojo das partes em que ele tocou, nojo de ter sentido aquela boca na minha. Enquanto as lágrimas grossas - antes presas - corriam pela minha face, eu esfregava o meu corpo o mais forte que podia. Braço, perna, pescoço, boca. Não sei por quanto tempo eu repeti esse ato, mas percebi que deveria parar quando a pele do meu braço estava quase em carne viva.
Eu não me importava com qualquer dor que eu estivesse sentindo, eu só queria tirar qualquer resquício daquele covarde de mim. Me cobri com uma toalha e fui finalmente me olhar no espelho. Isso fez com que a minha raiva aumentasse.
Embora o tamanho da dor física não chegasse nem perto ao tamanho da dor psicológica, eu estava bem pior do que pensava. Num ato insano comecei a dar socos no espelho, em uma tentativa frustrada de acabar com a minha dor e diminuir a minha raiva.
Meus soluços estavam altos, meu peito arfava e minhas mãos sangravam no momento em que o Kurt me abraçou. Fui escorregando até o chão, chorando muito e ainda abraçada a ele, que fazia carinho em meus cabelos. A cada soluço meu ele apertava o abraço e me trazia para mais perto de seu corpo, sem dizer uma palavra, passou um dos seus braços por minhas pernas e me levou até a cama, se deitando ao meu lado logo em seguida. Me aninhei em seu corpo, prensando meu nariz na curva de seu pescoço e me intoxiquei com o perfume que eu tanto amava, enquanto tentava me acalmar. Senti algo molhar uma de minhas bochechas e o ouvi fungar.
Eu nunca o tinha visto chorar, mas ao mesmo tempo em que isso cortou o meu coração (por saber que ele estava chorando por mim) também fez com que eu me sentisse feliz, completa.
Eu havia encontrado alguém que partilhasse a minha dor, alguém que sofria junto comigo. Um certo alguém que não estava do meu lado apenas na alegria, mas também na tristeza, que pegava as minhas dores e transformava nas dele. E nesse momento, mais do que nunca, eu tive plena certeza de que eu o amava com todo o meu coração.
E eu sabia que isso era recíproco.
- Eu tô aqui, pequena. Sempre estive, sempre estarei. - Kurt disse olhando em meus olhos.
- Promete que não vai me deixar sozinha ?
- Prometo. - ele disse e em seguida me deu um selinho fraco.
- Eu te amo, Harcourt. - sussurrei, enquanto limpava seu rosto molhado.
- Eu te amo, Almeida. - ele repetiu meu ato.
Não neguei a ajuda do Kurt para me vestir, meu corpo inteiro ainda doía, eu queria dormir logo e eu não estava muito bem para pensar na vergonha de deixar o meu atual ex futuro namorado me ver completamente nua. Eu sei que isso não é certo - bom, pelo menos na minha opinião -, mas eu confiava nele e eu tinha certeza absoluta que não haveria maldade nesse ato.
Ok, talvez só um pouco.
Eu estava sentindo falta de sua boca, do seu gosto. Meu corpo implorava pelo dele, por um contato que fosse e por isso, quando ele terminou de descer minha camisola, eu o puxei pelo pescoço e colei nossas bocas. Ficamos assim por uns segundos, apenas sentindo um ao outro.
Entreabri minha boca e dei uma fraca mordida em seu lábio inferior. Pouco tempo depois senti sua língua pedir permissão para explorar minha boca e permiti. Era um beijo suave, dava para ver que ele não queria me machucar pela forma em que a sua língua acariciava lenta e cuidadosamente a minha. Ele tentava não fazer movimentos bruscos nem fortes, envolvendo seus braços na minha cintura e aproximando seu corpo do meu, aumentamos a intensidade do beijo, mas sem perder a doçura. Soltei um gemido baixo quando ele mordeu de leve o meu lábio inferior e uma de suas mãos começou a acariciar minha coxa, subindo minha roupa de dormir aos poucos.
As imagens da sauna retornaram à minha cabeça, fazendo com que meu coração acelerasse e eu o empurrasse. Kurt olhou para mim confuso, mas após ver as lágrimas que caíam lentamente por minha face entendeu a minha atitude.
- Desculpa. - pedi - Acho melhor eu ir dormir.
- Tá bom. Eu vou para casa.
- NÃO. - gritei desesperada - Você disse que não ia me deixar sozinha, Kurt. Fica aqui, fica comigo. - falei com a voz chorosa.
Ele não falou nada, apenas apagou a luz e veio se deitar ao meu lado.
Entrelacei meus dedos nos dele e fiquei de costas, fazendo com que ele me abraçasse. Dormi, enquanto ele sussurrava uma música que eu ainda não conhecia. Adormeci com um dos versos ecoando em minha cabeça.
"You're the light that makes my darkness disappear"
- Conhece a piada do nem eu, amor ?
- Não. - respondi revirando os olhos.
- Nem eu. - ele disse e começou a rir que nem um idiota.
- HáHá. Muito engraçado, Kurt, estou morrendo de rir. - Thiago falou irônico.
Eram onze da manhã e nenhum de nós três tínhamos ido para o colégio. Eu estava tentando adiar a conversa que eu teria com o Luc, então obriguei o Thiago a matar aula junto com o irmão. As meninas estariam de volta a qualquer momento e, devo admitir, eu estava muito preocupada com a reação do Luc sobre tudo o que aconteceu, principalmente em relação à Paula.
O Kurt não quis me contar de jeito nenhum o que eles haviam conversado, então eu não sabia o que esperar.
Nesse momento, os dois estavam tentando me animar contando piadas. Uma mais rídicula do que a outra.
Frize o ridícula e acrescente o adjetivo 'tosca' por favor.
- Então conta uma melhor, oras. - Kurt revidou irritado.
- Eu vou contar. - Thiago.
- Conta.
- Espera apressado. - ele pareceu pensar e logo depois abriu um sorriso - Ok, uma caixa de som falou para outra: "Vamos fazer uma caixinha ?" Sabem o quê a outra falou ?
- Não. - eu e o Kurt respondemos juntos.
- "Não posso sou estéreo" - eu não deveria me surpreender com o fato dele estar quase chorando de tanto rir da piada, mas cara... Meu melhor amigo é doido, namoral.
- EU TENHO OUTRA, EU TENHO OUTRA. - Kurt falou e se levantou, portando ao lado do Thiago - Sabe o quê o número 2 falou para o número 1000 ? Você é grande, mas não é dois. - os dois começaram a rir, enquanto eu olhava indignada para aquela situação. Qual é, só eu não via graça nisso ?
- Agora nós dois vamos contar uma piada para você, gatinha.
- Vamos ? - Kurt.
- Vamos, aquela do Paraguaio. - ele deu um cutucão no irmão, que gritou um 'ah, sim' quando se lembrou.
- Você é o paraguaio e eu sou a mulher tá ?
- O marido traído contradou um matador para acabar com a vida da mulher. - Kurt começou, fazendo uma voz de locutor de rádio.
- Toc Toc Toc. - Thiago falou e bateu o meu despertador na parede, tentando fazer um som.
- Thiago, se você quebrar esse despertador, você vai comprar outro. - falei, sem me dar conta de que ele havia me dado este.
- CA-LA-DA. - ele berrou silabicamente - Eu não sou o Thiago agora, sou o matador.
- Sem interrupções por favor. - Kurt pediu.
- Toc Toc Toc.
- Pois não ? - Kurt falou, fazendo uma voz extremamente fina.
- Sou Paraguaio e vim aqui para te matar.
- Para o que ??? - Kurt berrou, ainda com a voz fina, com um falso desespero.
- Paraguaio.- confesso que nessa até eu ri, a situação estava cômica.
- Nossa, que piada tosca. - falei ainda rindo.
- Ela pode ser até tosca, mas pelo menos a gente conseguiu te fazer rir. - Thiago disse, se sentando ao meu lado.
- Nunca ouviu aquela frase que diz "Se não tem graça, ria por educação", não ? - falei debochada.
- Ela está fazendo pouco caso das nossas piadas, Thiago.
- Já que não conseguimos fazê-la rir por bem...
- Vamos fazer por mal...
- COSQUINHA. - os dois berraram juntos e me atacaram.
Se tem uma coisa que eu não suporto, são cosquinhas. Eu já estava chorando de tanto que ria e a minha barriga doendo, quando a porta foi aberta.
- Kurt, Thiago. - meu irmão cumprimentou os dois com um aceno de cabeça e entrou no quarto.
- Er, a gente vai deixar vocês conversarem. - Kurt falou e saiu puxando o irmão.
- Tchau, gatinha. Depois a gente se fala.
Um silêncio incômodo se instalou no meu quarto, equanto nós dois nos olhavámos. Luc não falava nada, muito menos eu. Era uma questão de tempo até que ele me abraçasse e dissesse tudo o que queria dizer. Mas eu fiz isso antes que ele o fizesse, minhas pernas me levaram até o meio do quarto - onde ele estava - e meus braços trataram de lhe dar o mais forte abraço que eu conseguia.
- Meu mundo desmoronou quando eu te vi daquele estado, gordinha. - ele falou carinhoso, acariciando meu rosto - Eu te pedi tanto pra você não ir.
- Desculpa, Luc. Eu deveria ter de ouvido, eu deveria ter ficado em casa.
- Não se culpe, também não tinha como você saber, né ?
- Se eu não tivesse ido, isso não teria acontecido.
- Mas você foi e a gente tem que dar graças por aquele filho da mãe não der conseguido fazer o que queria.
- Eu não quero nem pensar no que iria acontecer se o Kurt não tivesse chegado naquele momento. - falei com a voz chorosa, enquanto revivia a cena em minha cabeça.
- Sabe, Bia... - ele começou receoso - O Kurt gosta muito de você, pelo menos ele parece gostar. Depois que ele te colocou na sua cama, a gente conversou e ele me contou tudo o que tinha acontecido, nos mínimos detalhes. Eu podia entender o que ele sentia, porque eu estava sentindo o mesmo. Te ver daquele jeito cortou meu coração, não é algo que a gente deseja nem para a pessoa que a gente mais odeia. E você não merecia isso... - ele suspirou pesadamente.
- Isso quer dizer que você também acha que a Paula tem culpa nisso, né ?
- E você não ? - ele falou rispidamente - Eu pedi a ela que cuidasse de você, mas o quê ela fez ? Você seguiu os meninos para não deixá-la sozinha e pela primeira vez na vida eu odiei o fato de você ser tão altruísta. Qualquer pessoa no seu lugar iria embora e deixaria a bêbada se virar depois, mas não você.
- A Paula é minha amiga, Luc. Eu nunca a deixaria sozinha naquele estado.
- E olha no que deu, maninha.
Ele começou a passar a mão pelas partes machucadas do meu corpo. Minhas mãos cortadas (resultado dos socos no espelho), meus pulsos roxos, as marcas de mão nas minhas coxas, algumas mordidas em meu pescoço, o corte em meu supercílio e o machucado de minha boca.
- Você sabe que essa não foi a primeira vez que a Paula bebeu. - comecei - Todos às vezes em que ela acordava arrependida das coisas que tinha feito e de ter se embebedado tanto, ela vinha conversar comigo. Era a primeira coisa que ela fazia. Por ser a mais velha, ela se sente responsável por nós três, então ela virava para mim e falava, "Eu não quero que você me veja como mais uma bêbada desse lugar, eu quero que você sinta orgulho de mim, fofinha". Aí ela pedia desculpas e me prometia que nunca mais beberia de novo, eu acreditava nisso. Acreditava nessa promessa e ela cumpria, até que houvesse a próxima festa. Era sempre a mesma coisa, as mesmas palavras...
- Você não aguenta mais isso. - era estranho o modo como ele me conhecia.
- Não, eu não aguento. A Paula é muito importante para mim, eu não posso simplesmente desistir dela. Eu quero muito acreditar que ela vai conseguir parar de beber, que ela vai deixar de se autodestruir, mas...
- Por muito que os ventos soprem, uma montanha nunca se inclina, né ? - ele me completou.
- E se ela não mudar ? E se o que aconteceu comigo não fez com que ela aprendesse a 'lição' ?
- Você gosta da Paula e isso eu não posso mudar, mas eu não vou deixá-la te prejudicar. Se ela quiser se ferrar, ela que se ferre sozinha. Mas antes ela vai ver só. - percebi o quanto ele estava chateado com isso tudo.
- Luc.
- Sim ?
- Me promete que você não vai brigar com a Paula. Ela estava bêbada, não sabia o que estava acontecendo.
- Mas é justamente por isso, porque ela estava bêbada.
- Eu não quero que ela se machuque mais do que já está. Não a culpe mais, ela já sabe disso. Não precisa jogar na cara também. - eu estava desesperada, conheço muito bem o meu irmão para saber que quando ele briga com alguém, ele fala as coisas sem pensar e, principalmente, para magoar.
- Sinceramente, eu não me importo.
- Mas você se importa comigo, sou eu quem está pedindo, Luc. Por favor, não briga com ela.
- ...
- Promete que não vai brigar com ela, por mim.
Antes dele responder nós ouvimos a porta da sala bater e a Ana Juli berrar algo com a Flora.
Luc olhou para mim como se pedisse desculpas e saiu rápido em direção à sala. Fui atrás dele, tentando impedi-lo, mas eu não estava bem e ele se aproveitou disso. Quando cheguei na metade da escada, já era tarde demais para tentar fazer ou dizer alguma coisa.
Ele já estava lá. E estava brigando com ela.
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